Orgulho!

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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

PRAÇAS SÃO ECOS DA CONDUÇÃO DA CIDADE







Nossas praças personificam ecos cotidianos da administração, da urbe ou singelas lembranças pueris. Quando penso nestes locais públicos de Cachoeira, chamados na antiga Grécia de ágoras, a linha do tempo delas configura imagens na minha mente: evolução natural, ficcional, surrealista, aventuras e desventuras.

São quatro as principais: 1ª) Praça do Pelourinho, atual José Bonifácio, a mais antiga, datada de 1830; 2ª) Praça Balthazar de Bem, erigida pouco a pouco, recebeu este nome em 1925; 3ª) Praça-reservatório Borges de Medeiros, construída em 1925 e, por fim, 4ª) a ‘E.T.’ Praça Honorato, nascida Estação Ferroviária, decepada em 1976 por forças ocultas e posteriormente meio recauchutada, meio metamorfoseada.

Um dia a Praça da Matriz sofreu o primeiro esquartejamento, praticado também por forças enigmáticas. Na volta dela, havia um gracioso muro mais ou menos alto com gradil – proteção contra os cavalos e que seria hoje, digamos, altamente pertinente nessa época onde a eficiência e a impunidade da cleptocracia assombram. Roubam-se desde anões de jardim, comida de creche a retroescavadeira (milagrosamente recuperada). Recebeu como vizinho o deus heleno das águas, Poseidon, cercado de beldades – as musas das artes e ciências, esculturas surpreendentemente ainda intactas. Conveniou-se usar a versão latina – Netuno – sem prejuízo algum ao encanto do monumento.

O neoclassicismo temperava os ares pelos olhares do construtivismo. Ao lado da passarela, havia um vizinho nobre, o Teatro Municipal (o segundo), construído em 1900. Quem habitava bem no píncaro da cumeeira, o lugar mais privilegiado? Mistério. Foi condenado à pena capital. Antes da execução, suas últimas palavras devem ter sido lagartos, cobras e pragas por não entender como um santuário cultural de menos de vinte anos desmanchava-se para anos mais tarde dar lugar a uma nova construção, padrão-arquitetônico-Europa-submetida-à-Cortina-de-Ferro. Nesta época, várias escolas públicas foram construídas muito parecidas obedecendo a plantas oficiais cujos critérios eram interrogações. Talvez, um sinal do arranque da massificação das escolas públicas com sua posterior degringolação.

Pelourinho, Ponche Verde, do Mercado ou das Palmeiras, nomes rudes demais cederam espaço a José Bonifácio, a eminência parda da independência, um nome forte, uma praça forte mas ... cadê a praça? O Mercado sucumbiu em 1957. E o Coreto? No lugar da majestade, surgem a negligência e a banalização: pista de skate, calçadão desértico, fonte parada e barzinhos. As dunas são os montículos de entulhos das reformas eternas. Mais? Evaporaram os bancos, a mureta, a escada curva com colunetas, o antigo cinema Coliseu, os potes, o relógio. O coração cachoeirense enfarta: o ventrículo esquerdo chora, o direito uiva tal como a “Casa da Aldeia do Florence”, uma aurícula se retorce, a última delira, febril. Cachoeira está farta.

No início da década de 70, descobriu-se que a Pátria não tinha aqui um altar à altura da dignidade que a Nação merecia. Fácil, muito! Consultou-se um oráculo onde habitavam cupins roedores, motosserras, picões, martelos e brocas. Desmaterializou-se no fumacê, a última praça pública com ares virginais – mas nem tanto ... Sob as fanfarras de ‘Pra Frente, Brasil, Salve a Seleção’ retumbando ainda havia somente dois anos, desfigurou-se a bela vista da Praça Borges de Medeiros com uma espantosa combinação ao estilo água e óleo. Não se misturaram. Acabei de lembrar do artigo do historiador Voltaire Schilling, na Zero Hora, ‘A Capital das Monstruosidades’, onde o autor se refere a um vale dos horrores, devido à existência de monumentos em Porto Alegre, deslocados da órbita do razoável. Foi outro duro golpe, porque a praça já estava desfigurada por reformas anteriores.

Em 1º de junho de 1975, veio abaixo a Estação Ferroviária de Cachoeira do Sul, construída em 1883. Pena capital, assunto tabu. A comunidade virou estátua de sal. Quando se lê qualquer memória de Cachoeira, há um constrangedor vão, um buraco negro cujo espaço hoje, transtornado, abriga gregos e troianos, inferno e paraíso, rios e mares de lágrimas de uma ruptura. Há um imenso campo para o parque, um banheiro público fedorento, um acasalamento de pontos de ônibus, tenebrosos dogs, um camelódromo, um estranho monumento à imigração e um melancólico metro de muro remanescente da antiga Estação. Entre as árvores, no meio deste tabuleiro surreal, uma planta morta, seca e torta. Pergunta ingênua: por que não é construída uma réplica mais modesta? Devolveria à cidade uma tênue luz de respeito e dignidade para com sua história do tempo dos trilhos.

Delirou-se a revitalização da Estação Ferreira para amainar remorsos reprimidos, porém esta, esfiapa-se diante dos vândalos, da ignorância e da cegueira oficial. Segue ainda em pé, assumindo aparência de queijo suíço pelos roubos das aberturas, da cobertura e do assoalho. Parece que foi mesmo um sonho e nada mais.

Cachoeira pulsa e purga seus pecados. Uma histórica cidade, de históricos erros. As ágoras-praças seguem vivas, seguem lembranças, seguem doloridas recebendo, por seus generosos caminhos, seu povo. Parecem não se importar com o fato de que um dia foram cartão postal, refinadas rainhas. Oferecem seus bancos à sua gente, suas sombras ao descanso, o verde ao prazer dos olhares, seus mistérios às saudades de pessoas como eu, apaixonada platonicamente pelo passado intrigante, feliz e infeliz, dos recônditos deste nosso chão.


Publicado no Jornal do Povo, Cachoeira do Sul, em 07 de junho de 2010.


* Subsídios históricos: historiadora Mirian Ritzel, diretora do Núcleo Municipal da Cultura; historiadora Ione Sanmartin Carlos, diretora do Arquivo Histórico Municipal; Museu Municipal Edyr Lima e Felippe Moraes, presidente do COMPAHC.

* Créditos fotográficos: Museu Municipal, Arquivo Histórico, COMPAHC, Osvaldo Cabral de Castro, Renato Thompsen,Oni Lopes, Arquivo CORSAN, acervo pessoal.

* Fotos
NO TOPO:
Monumento ao Imigrante, praça Honorato de Souza Santos.
À ESQUERDA:
Primeira: Estação Ferroviária (foto do início do século XX)
Segunda: Passagem de trem pela Estação Ferreira
Terceira: Praça Borges de Medeiros (década de 30?)
Quarta: Vista aérea do conjunto Praça Balthazar de Bem, Chateau D'Eau, Igreja Matriz, Intendência e Teatro Municipal (década de 20 ou 30?)
À DIREITA:
Primeira: Estação Ferroviária de Ferreira
Segunda: Gazebo na José Bonifácio (demolido)
Terceira: Praça Borges de Medeiros

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