Orgulho!

Orgulho!

sábado, 27 de dezembro de 2014

Os bons velhinhos
Carlos Heitor Cony
Folha de São Paulo, 21 dezembro de 2014

                Pior do que acreditar em Papai Noel e não acreditar em nada. Por sinal, este é o caso em que eu me enquadro.
                Afinal, a  barra humana é dura de segurar e desde os tempos das cavernas qwue o homem apela para os papais noéis de circunstância.
Um a um, esse papais noéis foram desmascarados e restou, para alguns, talvez para a maioria dos homens, esse imenso Papai Noel que é justo e clemente, poderoso e universal, e ao qual devemos honra, louvor e glória e do qual devemos esperar a chuva e o sol, a vida e a morte.
                A ideia de Deus foi burilada, copidescada em vários níveis e transformou-se em uma das alavancas que sustentam o homem diante do mundo e da vida.
Até aí, tudo bem, cada um tem o Papai Noel que merece.


                O diabo é que os anos passam, passam, passam os séculos e ao contrário do Papai Noel, que a idade adulta desmascara com facilidade, a ideia de Deus persiste no coração e na mente do home, como a única alternativa que o libertará do desespero e do nada.
                Afinal, são duas ideias nascidas no mesmo forno.
                A do bom velhinho, que toma conta das crianças bem comportadas e que, no final do ano, traz brinquedos para elas e a ideia do pai universal, que anota os copos de água que damos ou deixamos de dar e que preside - de acordo com as sagradas escrituras - a cada cabelo que cai de nossas cabeças.

                São funções razoavelmente inúteis. Assim como seria desejável que Papai Noel desse de comer a todas as crianças que passam fome no mundo, também seria decente se Deus suspendesse por algum tempo os ditames de sua divina justiça e desse a todos os homens os mesmos direitos e deveres, dispensando-os de provar, dia após dia, a miséria que faz parte do nosso legado e da qual somos escravos. 

O SIGNIFICADO DA INDIFERENÇA

Havana
O significado da indiferença

Jânio de Freitas
Folha de São Paulo, 18.12.2014

          Os 53 anos do bloqueio americano a Cuba não foram ao regime comunista cubano. Foram a milhões de crianças, e a milhões de mulheres, e a milhões de homens , que compuseram na infância, na juventude, como adultos e como velhos as sucessivas gerações submetidas a mais de maio século do flagelo inútil de carências terríveis.
          O regime sobreviveu muito bem, deu-se mesmo ao luxo de derrotar todas as investidas, nas mais variadas formas, que a maior potência bélica não cessou de lhe dirigir. As afirmações de que o regime mudou não são inteligentes, são apenas vulgares. O que mudou foi o mundo, e o regime se adaptou às circunstâncias, como sempre fizera, e por isso sobreviveu. Em nova York, há 50 anos, ver negros  entrando no elevador com brancos era prova de estar na ONU.  Hoje a discriminação continua, porque o segregacionismo está na índole do país, mas os brancos vão à Casa Branca (um nove sugestivo) para falr com um negro.
          E por que tantos anos de sofrimento imposto a um povo cujo país nada poderia contra os Estados Unidos?
          Os motivos do bloqueio e seus antecedentes perderam-se na vaguidão "cultural" da atualidade. Mas não diferem dos outros que têm movido os Estados Unidos mundo afora. Apoiadores da ditadura de Fulgêncio Batista - simbolizável nos órgãos genitais mandados à noiva do estudante oposicionista que os perdeu na tortura -, os Estados Unidos exigiam que a revolução democrática de Fidel Castro preservasse os negócios de americanos no seu quintal cubano: a maior concentração de cassinos  os e bordéis do mundo, bebidas alcoólicas, grandes plantações de cana com mão de obra semiescrava e exportações de açúcar. Cuba era dividida entre negócios e grupos da máfia americana.
          Os problemas começaram com o fechamento dos cassinos e bordéis. Os chefes mafiosos haviam sido importantes para a eleição de Kennedy. A escalada foi intensa: reação americana, avanços revolucionários com nacionalizações e reforma agrária. Kennedy ordenou a invasão, derrotada pelos cubanos, e o bloqueio total a Cuba. Fidel, em seu primeiro grande movimento de manipulação das circunstâncias, compõe-se com a oferta de ajuda da União Soviética, típica da Guerra Fria. Até então, e desde a luta contra Batista, o grupo de Fidel e os comunistas mantinham hostilidade frontal. Também isso mudaria, e mudaria tudo mais.
          Dez anos depois da morte de Stálin, o Partido Comunista Cubano conservava o stalinismo em sua forma mais ortodoxa. Integrado a um governo que precisava apegar-se às relações com União Soviética, OCCC e suas concepções tornaram-se a força predominante na caracterização do regime.
          A crise da União Soviética desnorteou o regime cubano, e o fim do comunismo soviético lançou-o em circunstâncias que enfraqueceram a ortodoxia. No tempo das aberturas, o poder voltou ao reformismo, com uma peculiaridade: passou de irmão a irmão, com o sisudo e inflexível Raul retomando o Fidel extrovertido e aberto do princípio. E agora, o papa Francisco, o segundo papa cristão em nosso tempo, com João 23.
          A tão longa indiferença americana com o sofrimento de milhões de vítimas do bloqueio não tem originalidade. É a mesma que, em certa manhã de verão, lançou sobre os habitantes de Hiroshima uma tempestade de fogo e gases que os carbonizou, quando o seu país já queria discutir os termos da rendição. E, passadas pouco mais de 48 horas, a mesma indiferença jogou uma segunda bomba atômica, sobre os habitantes de Nagasaki, incandescendo-os todos. É a mesma indiferença que lançou sobre o pequeno Vietnã mais bombas com o fogo pegajoso do napalm do que todas as suas bombas lançadas na Europa e na Ásia durante a Segunda Guerra Mundial. É a mesma indiferença de um país, em palavras recentes do seu presidente, que "esta em guerra permanente".

          Indiferença pode ser sinônimo de perversão e perversidade. Significado que, parece provável, os futuros historiadores vão preferir.