Orgulho!

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domingo, 16 de agosto de 2015

A ERA DA MEDIOCRIDADE*

Voltaire Schilling - SEMPRE ATEMPORAL!
Texto extraído do livro  ‘Tempos da História’, publicado em 1995
Muro de Berlim
            Acredito que os ideólogos do conservadorismo, gente como Daniel Bell[1], que vivia pregando o “fim das ideologias”, vão ter ainda muito que lamentar. Seu argumento era de que o avanço da sociedade de consumo e a ampliação dos direitos democráticos atuam como fatore de amortecimento dos rancores sociais, fazendo cair as viseiras ideológicas dos esquerdistas. Mais tarde ou mais cedo os socialistas e toda a intelectualidade que com eles simpatizava cairiam na real de que o mundo não funciona inspirado no ideário da solidariedade e da fraternidade humana, mas sim pelos apetites interesseiros e pragmáticos dos indivíduos. As massas não tinham nada que serem idealizadas ou glorificadas, mas sim atiçadas ou coagidas ao trabalho pelas severas ameaças do desemprego ou de outras privações.  É claro que aqui e ali pontificavam nas multidões gestos afetivos e consagradores, mas não eram determinantes, simples trivialidades que não impulsionavam as forças produtivas. Argumentavam também que o capitalismo, entregue a si mesmo, não só pode prover razoavelmente bem as carências da população, como suprime, com o seu desenvolvimento, a razão de ser daquelas imensas manifestações a favor da justiça social de que tanto os intelectuais de esquerda gostavam de participar.
             De certa forma, mais e mais nos aproximamos desse mundo esboçado pelos conservadores, como Karl Popper, que desprezam, na realidade, qualquer referência à possibilidade do aperfeiçoamento humano que não aquele auferido pelas duras leis do mercado ou pela “superioridade da ordem espontânea sobre a ordem determinada” de Friedrich Hayek, este discípulo atualizado, mas inconfesso , de Arthur Schopenhauer.


             Mas esse mundo despido de ideologia que tanto anunciaram e com que ora nos deparamos não é um belo mundo. Onde os estados ideológicos, isto é, socialistas, começaram a ser desmontados, nada de superior surgiu. Na União Soviética, a longa Pax Comunista, primeiro implantada nas quase cem nacionalidades da República e, depois de 1945, nos países do Leste europeu, começo a ruir. E com o que nos deparamos?
             Na República do Azerbaijão, os aziris muçulmanos saíram à caça dos armênios cristãos minoritários na região. Na Geórgia soviética, várias minorias estão sendo ameaçadas de extermínio puro e simples. Na Romênia, a escassa população de origem húngara foi quase linchada pelo simples desejo de poder voltar a falar seu idioma. Na Bulgária, uma multidão ocupou as praças de Sofia para protestar contra o desejo da minoria turca, que perfaz apenas 8% da população, de batizar seus filhos com nomes otomanos. Na vizinha Iugoslávia, sérvios e croatas levaram o país à guerra civil devido a suas antipatias históricas e que apenas o prestígio do falecido marechal Tito mantinha conciliados. Se olharmos para a África do Sul, o panorama não é diferente. Bastou o porrete do policial branco começar a ser desativado para que zulus e xosas dessem início a violentas chacinas que mesmo os abraços de Nelson Mandela e o chefe Butelezi[2] estão longe de poder cauterizar.
            O desaparecimento dos conflitos de ordem ideológica que, queiramos ou não, eram intelectualmente e humanamente mais apaixonantes, deram lugar ao medíocre entrechoque étnico, as matanças cretinas que levam a um rebaixamento geral das lutas políticas. Que tratado posso eu escrever a favor de um grupelho étnico qualquer, - “o que me interessam os hotentotes?” – já disse Voltaire faz duzentos anos.
             Mas prevê-se também um efeito devastador junto à nova geração desideologizada deste final de século reduzida ao ideário yupe do sucesso financeiro e do consumo fácil. Estamos cada vez bem mais longe daqueles tempos em parte considerável da juventude estudantil ocidental resolveu eleger como modelo, segundo Lucio Colletti[3], “o deserdado, o marginalizado, o pobre”. Tempos em que os filhos da sociedade afluente terminaram por exercer um saudável exercício de militância crítica às instituições e costumes que então nos cercavam.
            Será muito duro para os jovens de hoje viver em sociedades que perderam qualquer interesse no aperfeiçoamento altruísta do homem e cuja máxima preocupação é o pregão da Bolsa de Valores. Estamos também aí ameaçados por uma regressão que nos conduzirá a sermos colhidos pelo acaso, pela consulta às trajetórias de Netuno, pelo comportamento de Plutão, pelos delírios dos comentas, pelo predomínio do kardecismo, da cultura zen, pelas previsões de Nostradamus, pelos humores de Xangô e pelo aumento desbragado da literatura zoroástrica.
            Este vazio existencial-ideológico termina sendo ocupado, cada vez mais, pelo  entorpecimento das drogas e outros derivativos afins, situação em que cada um procura, individualmente, a simulação de uma pequena fuga de um cotidiano reduzido à mediocridade. Estará essa gente que agora começa a enfrentar o fim do século condenada, como disse certa vez Baudelaire aos da sua época, “à farsa, ao erro, ao pecado e à mesquinhez, tendo que ocupar seus espíritos com os destroços das boas intenções do passado da mesma forma que os mendigos se alimentam dos seus próprios piolhos”?



[1] Sociólogo estadunidense (1919-2011), autor de várias obras entre as quais, “O Fim da Ideologia’.
[2] Mangosuthu Buthelezi é um político sul- africano, chefe tribal dos zulus e presidente do partido político Inkatha Freedom Party, que ele formou em 1975.
[3] Filósofo e político italiano (1924-2001).

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