Orgulho!

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quinta-feira, 8 de março de 2012

ALCERI MARIA GOMES DA SILVA

Livro com edições de 2007 e 2008,
publicado pela Comissão Especial sobre Mortos

e Desaparecidos Políticos
Acervo pessoal




Edição especial do Jornal do Povo contemplando o Dia Internacional da Mulher

PROCESSO 060/96

CEMDP

Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos

"Onde está a mulher que a ditadura fez sumir"?

Sobre mulheres há histórias de vida e da vida que, pela sua singularidade, possuem magneto de maior ou menor potencial. Elas vão de encontro às nossas sensibilidades multifacetadas e diante delas, predomina uma certa seleção natural.

Há histórias de cientistas, de operárias, de profissionais liberais, de professoras, de camponesas, de cantoras e atrizes, de líderes políticas. Mas também há histórias de mulheres-fruta, de sisters da brigbroderia global, de celebridades efêmeras e de musas de gosto duvidoso ... porém estas não encontraram meu interesse. Temos diante de nós uma presidente mulher com uma história pregressa “daquelas”. Em Cachoeira uma catadora de material reciclável será homenageada e junto com ela todas as mulheres e homens que lutam neste árduo front. Ele – o front - nos interessa, caso contrário nos afogaremos em breve no mar de lixo que as sociedades industrializadas produzem em ritmo cada dia mais alarmante.

Pois em um dia de janeiro deste ano, no meu correio eletrônico, recebo inusitada mensagem de um amigo pesquisador de Blumenau, Santa Catarina, chamado Wieland Lickfeld.

Sabedor da minha condição de professora de História e deveras interessada em “certas” questões brasileiras, Wieland perguntou-me sobre uma mulher que se chamava Alceri Maria Gomes da Silva cujo local de nascimento seria Cachoeira do Sul. Escreveu ele na mensagem eletrônica:

A Mensagem

“No último final de semana, apareceu uma reportagem no Jornal de Santa Catarina sobre uma senhora que mora em Blumenau, Clélia Gomes de Mello, irmã de Alceri Maria Gomes da Silva, nascida em Cachoeira do Sul/RS em 25/05/1943. Era militante da Vanguarda Popular Revolucionária e desapareceu em 17 de maio de 1970 nos porões do governo militar. Foi morta no mesmo dia, expedido atestado de necrópsia, mas o corpo jamais foi entregue à família. A família Gomes, da qual era a quarta das sete filhas, se mudou para Canoas quando ela era adolescente e quem a introduziu na VPR foi o então advogado Carlos Franklin de Araújo, que anos depois se casaria com Dilma Rousseff e se tornaria o pai da filha da nossa atual presidente. O contexto da matéria é a Comissão da Verdade, pela qual Clelia Gomes de Mello espera descobrir onde sua irmã foi sepultada”.

Wieland Lieckfeld, 31 de janeiro de 2012

Wieland referia-se ao Jornal de Santa Catarina, de Blumenau, em sua publicação de final-de-semana, de 28/29 de janeiro. Era a primeira de uma série de três matérias especiais do jornal, intitulada “Órfãos da verdade”.

Fonte: Jornal de Santa Catarina, de Blumenau, de 28/29 de janeiro de 2012

Fui surpreendida pelo detalhe de Alceri constar no jornal como nascida em Cachoeira do Sul e pelo fato de nunca ter ouvido falar neste (doloroso) caso.

Fonte: Jornal de Santa Catarina, de Blumenau, de 28/29 de janeiro de 2012

Sob o título “Que devolvam os ossos dela”, Clélia Gomes de Mello, 65 anos, integra uma das três famílias do Vale do Itajaí que, segundo o jornal, “tiveram renovadas as esperanças de obter respostas sobre as circunstâncias da morte de parentes de vítimas da repressão militar. Elas terão o nome do familiar morto durante a ditadura indicado para que a Comissão da Verdade, criada em dezembro de 2011, dê esclarecimentos sobre o abuso. Criada há cerca de pouco mais de dois meses, a Comissão ainda não tem data para começar os trabalhos”.

Imagem: a irmã Clélia, que mora em Blumenau

Fonte: Jornal de Santa Catarina, de Blumenau, de 28/29 de janeiro de 2012

A Comissão da Verdade objetiva investigar em dois anos, as violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. A Comissão será composta por sete membros, que ainda serão nomeados pela Presidência da República. Particularmente penso ser difícil cumprir o prazo pelo mar de dificuldades que ainda persistem no acesso a informações fidedignas.

A Comissão


A Comissão não terá poderes para punir agentes da ditadura. As investigações incluem a apuração de autoria de crimes como tortura, mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, perdoados com a Lei da Anistia, de 1979 (governo João Figueiredo).
O grupo será composto por sete membros, "de nacionalidade brasileira, designados pelo Presidente da República, com base em critérios como o da pluralidade, reconhecimento de idoneidade e de conduta ética e por defesa da democracia, da institucionalidade constitucional e dos direitos humanos".
De acordo com o projeto aprovado, funcionários do Executivo ou filiados a partidos políticos não poderão participar. A comissão contará com 14 funcionários, além do suporte técnico, administrativo e financeiro da Casa Civil.

Fonte: O Globo

Atiçada minha curiosidade, fui adiante. Consegui o caderno do jornal, enviado pelo correio por Wieland e acesso a subsídios materiais e humanos que me auxiliaram na pesquisa.

Encontrei três lugares diferentes para o nascimento de Alceri: Cachoeira do Sul (conforme aparece no Jornal de Santa Catarina), Porto Alegre (na worl wide web ou simplesmente web) e por último, segundo parentes que residem aqui em Cachoeira, a cidade de São Sepé (tendo acontecido o registro de nascimento no cartório de Palmas).

Filha de Oscar Tomaz e Odila Gomes da Silva, quarta de sete irmãs, Alceri veio morar com a família em Cachoeira do Sul. Clélia, a irmã que reside em Blumenau é a sexta dentre elas. A mãe era costureira.

Imagem: à direita, Alceri em cerimônia de batismo

Fonte: Jornal de Santa Catarina, de Blumenau, de 28/29 de janeiro de 2012

Na adolescência mudou-se com a família para Canoas onde foi trabalhar no escritório da fábrica Michelletto, quando começou a participar do movimento operário. Alceri filiou-se ao Sindicato dos Metalúrgicos onde conheceu Franklin Araújo, futuro ex-marido de Dilma Roussef e que trabalhava para o sindicato. Parte da família retorna mais adiante para Cachoeira do Sul

Juntamente com a irmã Clélia, foram dados os primeiros passos na militância política. Ambas tomaram parte da Vanguarda Popular Revolucionária, VPR, levadas por Franklin.

Vanguarda Popular Revolucionária

Organização de extrema esquerda, criada em 1966, que lutava contra o regime militar e que tencionava estabelecer no Brasil um regime de ideologia socialista. Utilizou a luta armada e um dos seus líderes foi o ex-capitão do Exército, Carlos Lamarca. Auto-dissolveu-se em 1971, após a morte de seu último líder, José Raimundo da Costa, dedurado pelo Cabo Anselmo, espião infiltrado pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social)

No final dos anos 60, com o aumento da repressão aos opositores do regime, estes passaram a viver na clandestinidade. O perigo de ser flagrado em militância era iminente. Porto Alegre não tinha mais segurança.

Em setembro de 1969, visitou sua família em Cachoeira do Sul para informar que estava de mudança para São Paulo, engajada na luta contra o regime militar. Alceri abandona o emprego ainda em 1969, muda-se para lá e passa para a clandestinidade. Em menos de um ano estaria morta.

Página 128 do livro Direito à Verdade e à Memória

Acervo pessoal

Na obra DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, de 2007, consta que Alceri foi presa e morta juntamente com Antônio dos Três Reis Oliveira (1948-1970). Ambos eram militantes de organizações clandestinas distintas. Antônio pertencia à ALN, Ação Libertadora Nacional. Ambos constam no Dossiê dos Mortos e Desaparecidos.

Após receber a notícia de sua morte, em circunstâncias não esclarecidas, a família viveu um verdadeiro processo de desestruturação. O pai, desgostoso, morreu menos de um ano depois de saber, por um delegado de Canoas, que a filha fora morta em São Paulo. A mãe desenvolveu problemas de saúde. Segundo depoimento da irmã Clélia, D. Odila foi a primeira a saber, através de um investigador da polícia de apelido Dois Dedos, que foi à casa dela comunicar a morte de Alceri e ainda fazer ameaças veladas à família. A irmã Valmira (nascida entre Alceri e Clélia), também militante política, não suportou a culpa que passou por ter permitido que a irmã saísse de sua casa. Suicidou-se.

Segundo depoimento dos presos políticos de São Paulo, os dois militantes foram mortos por agentes da Operação Bandeirantes, OBAN, chefiados pelo capitão Maurício Lopes Lima. Ambos foram enterrados no cemitério de Vila Formosa e os corpos nunca foram resgatados, apesar das tentativas feitas em 1991, a cargo da Comissão de Investigação da Vala de Perus. As modificações na quadra do cemitério, feitas em 1976, não deixaram registros para onde foram levados os corpos dali exumados.

Clélia buscou informações somente após a morte dos pais. Enquanto estavam vivos preferiu evitar mais sofrimento. Conseguiu obter atestado de óbito, laudo da necropsia e alguns documentos onde a morte da irmã é relatada.

Alceri viveu parte de sua curta vida em Cachoeira do Sul. Como tantos outros hoje fazem e naquela década também, migrou com a família para a Grande Porto Alegre, cinturão que atraía/atrai as pessoas pelas melhores oportunidades de trabalho ali oferecidas. Alceri apreciava Chico Buarque e sonhava em ser comissária de vôo. Possuía engajamento social em defesa dos negros e homossexuais. Escrevia poesias, principalmente sobre o amor.

Sua decisão de aderir à VPR custou-lhe a vida, abortada junto à de Antônio, quando uma equipe dos “órgãos de segurança” averiguava a existência de um “aparelho”, no bairro do Tatuapé, em São Paulo. Conforme consta no relatório do Ministério da Aeronáutica de 1993, a morte do casal aconteceu em 17 de maio de 1970.

Adentrando os caminhos perigosos da militância anti-ditadura que assumia várias correntes, umas mais cautelosas, outras radicais como as da guerrilha, assaltos, seqüestros e assassinatos, Alceri selou seu destino trágico porque o regime militar não deixou barato e massacrou sem piedade a oposição. As fotos dos mortos são fontes históricas incontestáveis das brutalidades cometidas contra os presos políticos.

Numa leitura ainda superficial da obra “Direito à Memória e à Justiça”, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, nela deparo-me com uma constante presente em parcela significativa dos mortos – muitos eram estudantes universitários muito jovens.

Militante mulher e negra, Alceri foi morta com quatro tiros com 26 anos, três anos antes do violento golpe no Chile que também promoveu uma carnificina oficial.

O chamado Cone Sul, Brasil-Uruguai-Argentina-Chile atravessou longa e tenebrosa noite até alcançar seu dia. E a prova deste dia alcança sua plenitude quando histórias como a de Alceri Maria Gomes da Silva vem de encontro ao Direito à Memória e à Verdade e aos olhos dos brasileiros incluindo aqui aos da cidade que um dia foi também o seu lar.

Agradecimentos especiais: professora Dina Marilu Machado Almeida, professora Lair Vidal e pesquisador Wieland Lieckfeld.

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