Orgulho!

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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Assassinado no Chile: Nilton Rosa da Silva, o Orelhinha

Foto: Orelhinha (reprodução)
 
O Orelhinha


Nilton Rosa da Silva, à direita, participou da Banda do Colégio Roque
Gonçalves em 1963. No meio, o mestre Cláudio de Lima que levou
a fotografia ao Jornal do Povo
Fonte: Jornal do Povo 


Recentemente a cidade de Cachoeira do Sul trouxe à luz,
um episódio nebuloso dos dias que antecederam o golpe militar
no Chile, em 11 de setembro de 1973:
a história do cachoeirense Nilton Rosa,
o Orelhinha, assassinado em julho do mesmo ano.
Orelhinha havia viajado ao país para participar
da resistência às tentativas de desestabilizar
o governo constitucional de Salvador Allende. 
      Ele havia desembarcado no Chile em 1971, seguindo o caminho de outros tantos brasileiros que fugiam da repressão em sua terra e chegavam sem muitas certezas quanto ao que poderiam fazer a partir dali. Na mala, trouxera mais livros que roupas – os amigos lembram que tinha sempre um volume literário embaixo do braço – e algumas cadernetas onde registrava seus versos íntimos. Era um poeta, e entre as posses que carregou para o exílio estava a experiência de militar no movimento secundarista gaúcho. Natural de Cachoeira do Sul e conhecido pelos amigos como “Bem-Bolado”,   Nilton estudou no Parobé, em Porto Alegre, e integrou a direção da União Gaúcha dos Estudantes Secundaristas no biênio 1967/68. Quando o AI-5 jogou a UGES e todo o movimento estudantil à margem da legalidade, ele e muitos mais seguiram articulando as mobilizações clandestinamente.
 


Foto: Samuel Iavelberg
      Isso até o endurecimento do regime se tornar insuportável. Na impossibilidade de permanecer no Brasil em segurança, o Chile logo surgiu como alternativa óbvia para buscar refúgio. Mesmo antes de Salvador Allende ser eleito e inspirar toda uma geração da esquerda latino-americana com sua promessa de uma transição livre rumo ao socialismo, os chilenos já atraíam por sua tradição democrática. O país era um caso único na região. Argentina, Brasil e Paraguai viviam sob ditadura e tinham históricos políticos conturbados. No Uruguai, a situação tampouco parecia muito animadora – e o golpe militar viria precisamente em junho de 1973. Os chilenos, por outro lado, sustentavam a fama de ter as instituições mais sólidas do continente, com sucessões presidenciais sem traumas desde os anos 30. Até governos de centro-esquerda chegara a ter, com a vantagem de não ter se prendido a líderes personalistas como um Vargas ou um Perón. O histórico democrático chegou ao ponto de, em plena Guerra Fria, o Congresso bancar (ainda que com sérias ressalvas) a chegada do marxista Allende à presidência.


Túmulo de Orelhinha
Foto: arquivo pessoal Raul Ellwanger

      “[Ir para o Chile] era uma questão prática e de bom senso: alguns países da América Latina exigiam passaporte, que o governo nos negou. No Chile o passaporte não era necessário e, além disso, era a única democracia da região onde havia essa facilidade”, lembra o músico Raul Ellwanger, um dos que escolheu atravessar os Andes na época. Às centenas, começaram a aparecer do outro lado da cordilheira estudantes brasileiros como Raul e Nilton. E, com eles, gente de todas as partes da América Latina. O fluxo se intensificou após a eleição de Salvador Allende, atraindo não só admiradores, mas também estudiosos interessados no desenrolar da “via chilena ao socialismo”.     Alguns dos exilados se integrariam aos partidos políticos locais. Outros evitariam um comprometimento mais visceral. Mas ninguém pôde ficar alheio ao processo de mudanças.

Enterro de Orelhinha
Foto: Amy Conger

Foto: Amy Conger

Antes de mártir, poeta

      Nilton da Silva matriculou-se no curso de Pedagogia em Castelhano da Universidade do Chile e passou a integrar o polêmico Movimiento de Izquierda Revolucionaria. O MIR era tido pela imprensa conservadora como o perigoso braço armado do governo mas, na realidade, nunca chegou a fazer parte da coalizão que elegeu Allende. Excluído da Unidade Popular por iniciativa própria, o MIR declarava seu apoio ao processo, mas com restrições. Em sua gênese, o MIR defendera a revolução socialista através da luta armada, uma pauta enfraquecida com a chegada da UP ao poder. Ainda assim, o movimento seguia pleiteando que o povo fosse treinado para resistir a um golpe que parecia iminente. Em meados de 1973, o impasse político tornara frequentes os conflitos entre grupos paramilitares de esquerda e direita. Num deles, Nilton foi assassinado.
Foto: Reprodução
Foto: reprodução
      Mas, bem antes de falecer para render poesia, Nilton havia sido, ele próprio, um poeta. Dos melhores da sua turma na faculdade. Junto com alguns colegas de curso ajudou a fundar uma revista chamada Etcétera, onde aparece a maioria de seus poemas publicados, e também mandou imprimir a mimeógrafo uns poucos exemplares de sua breve antologia pessoal, um livro chamado “Hombre América”. Nilton chegou a vencer um concurso universitário de poesia e recebeu o prêmio das mãos de Pablo Neruda, que havia regressado ao Chile com o Nobel de Literatura no bolso em fins de 1972.
      O cachoeirense não chegava a ser uma liderança proeminente do MIR, longe disso, mas quando um grupo de estudantes miristas ocupou um supermercado próximo ao campus, ele esteve entre os responsáveis pela administração. Era prática comum aos grandes armazéns do país: por medo da crise ou para agravá-la, alegava-se falta de alimentos quando na verdade o que ocorria era estocagem deliberada para vender os produtos a valores inflacionados no mercado negro. Informado pelos funcionários das empresas que faziam o açambarcamento, o MIR passou a ocupar os supermercados e assumir a administração à revelia, vendendo os gêneros alimentícios pelo valor do governo.
      “Perto do campus tinha um supermercado bem grande. Fomos lá, arrombamos a porta, botamos a comida nas prateleiras e tomamos conta. Botamos para fora os donos, nos revezávamos armados com pedaços de pau, com linchacos, e administramos. Nós fazíamos as compras, pagávamos os funcionários e distribuíamos a comida ao preço que o governo estabelecia. O que sobrava de lucro nós depositávamos na conta do dono”, recorda Carlos Beust, que também militou no MIR em seu exílio e era amigo de Nilton.
Uma tarde chuvosa em Santiago
Hubieras caído de espaldas sobre el mundo
Amenazando de paso el Edificio Central de la Administración
Impidiendo el sueño de empresarios y policías
Que discuten en sus reuniones el mejor modo de rematar tu cadáver
Estamos seguros de contar contigo cuando llegue el momento
Nilton da Silva.
Volveremos a ver tu rostro
En la primera concentración que hagamos en el centro.
(fragmento: ‘Nilton’, de Jorge Etcheverry)
      O frio costuma ser intenso em Santiago enquanto dura o inverno, sem espaço para veranicos, e às vezes começa um pouco antes da data marcada no calendário para o início da estação. Na tarde de 15 de junho de 1973, fazia um frio que já não era apenas de outono, e o céu com aparência borrascosa despejou uma chuva intermitente ao longo de todo o dia. Os transeuntes viram-se obrigados a apressar o passo nas calçadas da cidade, mas não só por isso os santiaguinos quiseram evitar as ruas: aquela sexta-feira seria marcada por conflitos violentos no centro da metrópole.
Foto: Samuel Iavelberg
Foto: Samuel Iavelberg
      Desde meados de abril, as minas de cobre de El Teniente e Chuquicamata, duas das principais jazidas do país, estavam parcialmente paralisadas. Em Tl Teniente, nove mil dos 13 mil empregados cruzaram os braços. A greve tinha o apoio dos partidos de oposição e cobrava aumentos salariais que o governo considerava irreais. Converteu-se em um pretexto a mais para agravar a crise política e econômica, somando-se à lista de problemas – muitos deles artificiais – que forjavam o cenário de um golpe. A paralisação dos mineiros completaria dois meses naquele final de semana, e dezenas de ônibus e caminhões traziam grevistas desde a cidade de Rancagua para protestar. A manifestação contaria com o apoio armado da Frente Nacionalista Patria y Libertad, de extrema-direita, o que era uma promessa de brutalidade nas ruas.
      Havia uma rixa a mais para engordar o barril de pólvora da tarde: também os caminhoneiros davam seu suporte aos mineiros paralisados. Em outubro de 1972, os transportadores haviam feito uma greve que provocou desabastecimento em todo o país, atacando os donos de caminhões que se recusassem a deixar de rodar. Aquela paralisação fora sustentada por vultosas somas de dinheiro vindas dos Estados Unidos, que causavam um fenômeno interessante: logo no momento de maior crise, com os caminhões parados e as gôndolas dos supermercados vazias, o valor do dólar no mercado negro baixava vertiginosamente devido à quantidade de moeda que entrava no país para bancar o movimento. O MIR, que preparava uma contraofensiva, acirrou ainda mais os ânimos frente aos caminhoneiros.
Foto: Reprodução
Foto: reprodução
      “Eles fizeram um bloqueio total, os alimentos não chegavam onde tinha que chegar. Agora os caminhoneiros queriam entrar na cidade também, e nós saímos em defesa do governo, para impedir que eles tomassem a cidade”, recorda Carlos Beust. Santiago virou uma praça de guerra, com diferentes frentes de conflito entre os grupos. Os mineiros buscaram se concentrar próximos à sede do Partido Democrata Cristão, principal sigla oposicionista, e acusaram a polícia de tentar dispersá-los com violência. Mas a selvageria era indiscriminada. Segundo Raul Ellwanger, que junto com o Comitê Carlos da Ré (Comitê Gaúcho de Verdade, Memória e Justiça) tenta mapear o local do assassinato de Nilton da Silva para a instalação de um monumento, o Patria y Libertad teria ameaçado destruir o Comitê Central do Partido Socialista, o que fez diversos membros dos partidos de esquerda acorrerem ao local. “Os militantes estavam defendendo essa sede. E, nisso, o pessoal do Patria y Libertad disparou e matou o Nilton”, diz Raul.
      No dia seguinte, conforme documenta o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira em “Fórmula para o caos: a derrubada de Salvador Allende”, a Embaixada Brasileira em Santiago enviou um telegrama confidencial para Brasília notificando do acontecido. Sob o título de “brasileiro morto”, o embaixador Câmara Canto informava dos registros de 64 feridos, 24 detidos e um morto, que apareceu identificado como “Milton da Silva Rosa”.

Um jacarandá na Universidade do Chile
¡Ah mi patria… patria mía…
yo que recorrí todo tu cuerpo
que sentí la miseria y la opresión
junto con todos tus seres…
El clamor de la guerra,
de la lucha, de amor,
que sale de mi alma
y que resuena en toda américa
es el mismo clamor, de tu pueblo,
de mi pueblo.
Mi patria no es sólo mi patria,
es la patria de los humildes,
de los explotados de este continente…
(fragmento: “¡América!”, de Nilton Rosa da Silva)
      Nilton não foi o primeiro e, com o golpe que viria em setembro, estaria longe de ser o último militante de esquerda a ser morto no Chile. Mas seu assassinato causou uma comoção como poucas vezes se vira no país até então. Talvez o único caso comparável naqueles tempos tivesse sido o assassinato do operário Miguel Ángel Aguilera, às vésperas das eleições de 1970. Na ocasião, o cortejo fúnebre reuniu milhares de pessoas e se transformou em um funeral de cunho político. Víctor Jara, o cantor mais proeminente ligado ao Partido Comunista, compôs para Aguilera uma canção chamada “El alma lleno de banderas”, que a certa altura dizia: “aqui, irmão, aqui sobre a terra/ a alma se nos enche de bandeiras/ que avançam/ contra o medo/ avançam/ venceremos!”. O “venceremos” era uma referência ao hino de campanha de Allende, que repetia a palavra várias em seu refrão.
      O funeral do brasileiro gerou reação parecida àquela vista na época da morte de Miguel Aguilera. É incerto o número de pessoas que tomou as ruas no domingo, 17 de junho, mas numerosos relatos costumam colocar a estatística na casa dos cem mil. Embora o MIR tenha liderado a procissão, os partidos da Unidade Popular – que muitas vezes não simpatizavam com a ideologia mirista – também se sentiram afetados e acossados pelo ocorrido. Amy Conger, fotógrafa estadunidense que registrou o cortejo, perguntou em seu livro de fotos: “terá o povo sentido essa morte como um presságio do que viria?”. Apenas duas semanas depois, o Chile viveria uma tentativa – frustrada – de golpe de Estado, conhecida como Tancazo, que deixou 22 mortos. Foi o ensaio geral para a verdadeira insurreição, a de 11 de setembro.
      No Brasil, com os jornais sob censura, a morte de Nilton Rosa da Silva passou praticamente despercebida. Os diários apenas o citaram, sem qualquer alarde, com a mesma indiferença de uma estatística. Uma nota do Estado de São Paulo, no dia 17, ajuda a entender o que o governo pensava a respeito: “Esquerdista morto era asilado”, diz o título. Nilton ser brasileiro virava fato secundário, pois antes ele era duas coisas perigosas, até desprezíveis, no vocabulário de uma ditadura – primeiro, um esquerdista; depois, um asilado, o que não deixava dúvidas de que havia atuado contra o regime.
      “Muitos brasileiros quiseram colocar a bandeira do Brasil em cima do caixão, e nós não permitimos. Dizíamos: o Nilton morreu aqui no Chile, e saiu do Brasil exatamente porque não o deixaram ficar lá. Não havia condição de deixar a bandeira do Brasil em cima do caixão do Nilton”, rememora Carlos Beust. Nilton da Silva foi sepultado sob uma bandeira do Chile e outra do MIR.    Tornou-se nome de población, nome dado às favelas dos arrabaldes, e sua nacionalidade foi lembrada de modo mais sutil: plantou-se um jacarandá em frente ao prédio J da Universidade do Chile, onde ele estudava.
      Dez anos mais tarde, muito próximo do local onde fica o nicho de parede com os restos mortais de Nilton, surgiu o túmulo de uma criança nascida poucos dias depois da morte dele. O menino falecido em 1983 também se chamava Nilton, misteriosamente. Depois se descobriu que o pai havia batizado a criança em homenagem ao poeta, e quando perdeu o filho fez as gestões necessárias para encontrar um local próximo àquele em que o brasileiro jazia. Por muito tempo, esse senhor anônimo garantiu a provisão de flores aos dois Niltons do Cemitério Geral de Santiago.
* Segundo Raul Ellwanger, o Comitê Carlos da Ré vem buscando, com o apoio de pesquisadores chilenos, a localização exata em que Nilton foi alvejado, no objetivo de posicionar uma placa sinalizando o fato. A ideia é instalar a homenagem em setembro, quando o golpe de Estado chileno completa 40 anos.
* Neste sábado (15/06/2013), a RBS TV exibe o curta “Exilados”, que narra o reencontro de Carlos Beust de Oliveira com seu filho Pedro, em Santiago do Chile. O filme inclui gravações no Cemitério Geral, em visita ao túmulo de Nilton da Silva.

FONTE: http://www.sul21.com.br/jornal/todas-as-noticias/golpe-no-chile-40-anos/nilton-da-silva-virou-jacaranda-um-brasileiro-morto-pela-ultradireita-no-chile/
 

 

Um comentário:

  1. Nilton, participou da Banda Marcial Gonçalvense no ano de 1965, ano em que fundamos a banda, ou seja 13/08/1965 e não 63 como consta, o mór da Banda nesse ano era Diogo Duarte. Amailde Lazzarini Labres

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