*Shlomo Sand
Publicado no Correio do Povo em 31 de janeiro de 2015
Judeu, historiador, professor da Universidade de Tel Aviv,
autor de vários best-sellers, entre os quais “A invenção do povo judeu” e “Como
deixei de ser judeu”, Shlomo Sand, 68 anos, é um intelectual polêmico que não
teme enfrentar as posições dominantes nem a ira de alguns dos seus colegas de
profissão. De Nice, na França, onde passava alguns dias ao sol e escrevendo um
livro sobre a relação da história com a ciência, ele concedeu, por telefone,
esta entrevista ao Caderno de Sábado. Como sempre, foi implacável.
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Shlomo Sand |
Passado o impacto da tragédia de Charlie Hebdo, Sand faz o
balanço da relação do Ocidente com a religião islâmica e do conflito israelo-palestino,
Caderno de Sábado – Por que, após os atentados de Paris, o
senhor declarou, contra boa parte da intelectualidade, não ser Charlie?
Shlomo Sand – Logo depois dos atentados de Paris, escrevi um
texto intitulado “Eu sou Charlie Chaplin”. Expus a minha recusa ao slogan “eu
sou Charlie”, que reuniu pessoas solidárias aos cartunistas de Charlie Hebdo
assassinados por extremistas. O crime cometido não tem justificativa nem
desculpa. Dito isso, eu fiz a seguinte pergunta: devo me identificar com as vítimas
e ser Charlie porque os mortos representavam a encarnação da liberdade de
expressão? Algumas das caricaturas de Charlie Hebdo eram de mau gosto. Apenas
algumas delas me faziam rir. Havia na maioria das charges publicadas pelo
jornal uma raiva manipuladora com o objetivo de conquistar mais leitores. A
caricatura de Maomé com um turbante-bomba publicada por um jornal dinamarquês
em 2006 já me havia parecido uma pura provocação. Algo como relacionar judeu
com dinheiro. Tudo isso só tem servido para associar islamismo e terrorismo.
Incita ao ódio, dissemina preconceito, desrespeita a fé do outro. Sendo assim,
não sou Charlie.
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Caos em Gaza |
Sand – O limite da liberdade de expressão é a difusão do
racismo. Duvido que Charlie Hebdo se atrevesse, como escrevi no meu artigo logo
depois dos fatos, a publicar uma caricatura do profeta Moisés de quipá com ar
de agiota numa esquina. Concordo com a proibição, na França, a que o humorista
e polemista Dieudonné faça piadas com o holocausto, mas não posso admitir que
ele seja agredido. Se fosse, porém, eu não sairia com um cartaz dizendo “eu sou
Dieudonné”. O limite ao humor é a incitação ao ódio, ao racismo e ao
preconceito. Uma coisa é satirizar uma religião dominadora e opressiva. Outra,
atacar a crença de grupos dominados e humilhados. O Ocidente está acostumado a
apoiar as piores opressões no Oriente Médio. Dito isso, precisamos lutar contra
o extremismo de organizações como o Estado Islâmico, sem esquecer que europeus
deixaram esse crescimento acontecer bancando, muitas vezes, os bombeiros
incendiários.
Caderno de Sábado – O Ocidente tem então responsabilidade no
que aconteceu como sustentam alguns intelectuais de esquerda?
Sand – É disso que estou falando. O Ocidente não faz o papel
de Voltaire no Oriente Médio ou no mundo islâmico. É preciso não ridicularizar
grosseiramente o islamismo na Europa onde vivem milhões de muçulmanos em
condições precárias, realizando os trabalhos mais insalubres. Por tudo isso,
não sou Charlie. Minha simpatia fica com os muçulmanos que vivem em guetos e
poderão ser vítimas do ódio desencadeado pelos atentados. Minha referência é
outro Charlie, aquele que nunca zombou de pobres e humildes, Charlie Chaplin. É
fundamental lutar contra o terrorismo, que existe e produz devastação,
tomando-se o cuidado de não estimular racismo e ódio. Além disso, a Europa não
pode esquecer seu passado colonialista recente e os rastros que isso deixou. A
Europa acompanhou os Estados Unidos ajudando a criar o caos no Iraque e na
região. Com apoio de aliados “esclarecidos”, grandes defensores da “liberdade
de expressão”, como os sauditas, ajuda a preservar fronteiras ilógicas
estabelecidas por interesses imperialistas. A minha conclusão é simples: o
Ocidente não é a vítima ingênua e inocente como gosta de se apresentar. A
França é responsável pela situação atual do Mali. Precisamos dar uma basta à
hipocrisia que dá aos ocidentais sempre o bom papel. Intelectuais e escritores
desempenham um papel nisso.
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Uma das centenas de crianças assassinadas no bombardeio israelense à Faixa de Gaza |
Caderno de Sábado – Livros como o romance de Michel
Houellebecq, “Submissão”, que trata da ascensão ao poder na França de um
presidente muçulmano, em 2022, incitam o medo do islamismo?
Sand – Michel Houellebecq, mesmo que não seja a sua
intenção, contribui para que as pessoas sintam medo do islamismo. Ninguém pode
escrever um livro tendo como tema uma ameaça de judeização do mundo, mas o
autor de um romance sobre uma ameaça de islamização ganha todos os espaços de
mídia. A questão é: como lutar contra o terrorismo? A resposta, como venho
mostrando nas minhas reflexões sobre o conflito israelo-palestino, está em
entender as origens do conflito. Sem desconstruir os mitos não se chega ao
cerne dos problemas maiores.
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Gilad, Naftali e Eyal, os três rapazes israelenses assassinados |
Caderno de Sábado – Como viu a participação do
primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu nas manifestações de Paris
depois do atentado contra a mercearia judaica e contra Charlie Hebdo?
Sand – Terrível. Netanyahu nem sequer compreende o fato de
que judeus possam viver em outros países. Na cabeça dele, todo judeu fora de
Israel está em situação temporária fora de casa e deveria voltar para o seu
lugar. Ele não entende o conceito de cidadão e de cidadania.
Caderno de Sábado – Um dos assassinos dos atentados de
Paris, o que invadiu a mercearia de produtos judaicos, fez menção à questão da
Palestina. O senhor é um estudioso das relações entre judeus e palestinos. Vê
uma saída para esse conflito que parece sem fim?
Sand – Não. Não vejo saída. Seria preciso uma forte pressão
internacional para salvar Israel de si mesmo. Essa pressão teria de vir dos
Estados Unidos, mas isso não acontecerá, pois Barack Obama não é presidente que
se poderia imaginar. Ele cedeu rapidamente ao lobby sionista e aos interesses
da indústria armamentista. Israel não percebe as próprias contradições. Desde
1947, instalou um regime de apartheid que não para de se acentuar. Temo pelo
futuro de Israel. As reações e revoltas poderão se ampliar atingido até a
Galileia.
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Soldados israelenses em oração |
Caderno de Sábado – Não vê Israel como uma verdadeira democracia?
Sand – Claro que não. Israel é uma etnocracia, o Estado dos
judeus, o que se baseia numa visão etnocêntrica. Uma democracia é de todos os
seus cidadãos independentemente das suas crenças ou “raças”. As medidas
recentes com o objetivo de enfatizar o caráter judaico do Estado de Israel
enfatizam esse elemento inaceitável de separação. Israel e Líbano são dois
países com elementos liberais e democráticos, mas Israel não pode ser visto
como uma verdadeira democracia na medida em que não aceita o fundamento
universalista do regime democrático. Os assentamentos, que continuam, e a
lógica empregada pelo sistema dominante alimentam esse apartheid que tem
consequências cotidianas deploráveis para palestinos vivendo em condições
precárias e insustentáveis. Qualquer um pode ver isso. Repito, só a pressão
internacional poderá levar Israel a ser democrático. Quanto ao conflito,
precisamos de dois Estados com base nas fronteiras de 1967. Fora disso, nada poderá
funcionar mesmo.
Caderno de Sábado – Como superar a questão dos refugiados
palestinos que gostariam de ter direito de retornar à terra de pais ou avós?
Sand – Temos de ver a situação com moderação. Todos os
refugiados não podem voltar, pois isso significaria o fim de Israel. Mas
precisamos fazer com que uma parte desses descendentes de palestinos possa
voltar. O princípio é simples: em 1947, a terra onde está Israel era deles, dos
palestinos, que foram expulsos de lá. Essa história de direito de dois mil à
terra de Israel é uma bobagem. Ninguém tem esse tipo de direito. Ou todos os
brasileiros de origem europeia deveriam sair do país e devolver o Brasil
inteiro aos índios? Os Estados Unidos também deveriam ser evacuados? Não existe
isso. Os judeus não são um povo, não são uma raça. Há judeus russos, poloneses,
judeus saídos do Iêmen, de origens distintas. Só a religião é comum entre eles.
Os brasileiros não são uma raça. Nem os judeus. Boa parte dos judeus de hoje
não descende de ninguém que jamais tenha vivido na Palestina, mas de pessoas
convertidas ao judaísmo em outros lugares.
Caderno de Sábado – E a lei de retorno para judeus?
Sand – Só devem poder ir viver em Israel judeus perseguidos.
É um critério factível e sustentável moralmente. Os demais têm as suas
nacionalidades e não são nem devem ser israelenses. Os fundamentos que
justificam a existência de Israel são o holocausto e o fato consumado. Dado que
Israel existe, precisa continuar existindo. Para isso, temos de conciliar
israelenses e palestinos no mesmo espaço. Como a terra era dos palestinos e não
se pode receber de volta todos os refugiados, cabe juntar dinheiro e indenizar
todos os que foram despojados. Um mítico direito de dois mil anos atrás não
pode se sobrepor ao direito de propriedade legítimo de 1947. Israel precisa
assumir o seu papel na tragédia da população palestina.
Caderno de Sábado – Não acredita numa unidade genômica dos
judeus?
Sand – De jeito nenhum. Essas pesquisas de DNA, essas
pesquisas que falam de um DNA comum a todos os judeus, são uma empulhação. Tudo
isso faz parte de um mito perigoso, o mito do povo judeu como raça.
Caderno de Sábado – Seus colegas o odeiam?
Sand – Historiadores apegados aos mitos sionistas me odeiam,
mas meus livros são best-sellers em Israel. Estou escrevendo um livro sobre
história e ciência para mostrar que história não é ciência. Ideologias, mitos e
emoções permeiam boa parte dos relatos.
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Soldado israelense O jeito dele me fez lembrar da escultura de Rodin - O Pensador |
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Menina palestina |
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