A ERA DA MEDIOCRIDADE*
Voltaire Schilling - SEMPRE ATEMPORAL!
Texto extraído do livro
‘Tempos da História’, publicado em 1995
Muro de Berlim |
Acredito que os ideólogos do conservadorismo, gente como
Daniel Bell[1],
que vivia pregando o “fim das ideologias”, vão ter ainda muito que lamentar.
Seu argumento era de que o avanço da sociedade de consumo e a ampliação dos
direitos democráticos atuam como fatore de amortecimento dos rancores sociais,
fazendo cair as viseiras ideológicas dos esquerdistas. Mais tarde ou mais cedo
os socialistas e toda a intelectualidade que com eles simpatizava cairiam na
real de que o mundo não funciona inspirado no ideário da solidariedade e da
fraternidade humana, mas sim pelos apetites interesseiros e pragmáticos dos
indivíduos. As massas não tinham nada que serem idealizadas ou glorificadas,
mas sim atiçadas ou coagidas ao trabalho pelas severas ameaças do desemprego ou
de outras privações. É claro que aqui e
ali pontificavam nas multidões gestos afetivos e consagradores, mas não eram
determinantes, simples trivialidades que não impulsionavam as forças
produtivas. Argumentavam também que o capitalismo, entregue a si mesmo, não só
pode prover razoavelmente bem as carências da população, como suprime, com o
seu desenvolvimento, a razão de ser daquelas imensas manifestações a favor da
justiça social de que tanto os intelectuais de esquerda gostavam de participar.
De certa forma, mais e mais nos aproximamos desse mundo
esboçado pelos conservadores, como Karl Popper, que desprezam, na realidade,
qualquer referência à possibilidade do aperfeiçoamento humano que não aquele
auferido pelas duras leis do mercado ou pela “superioridade da ordem espontânea
sobre a ordem determinada” de Friedrich Hayek, este discípulo atualizado, mas
inconfesso , de Arthur Schopenhauer.
Mas esse
mundo despido de ideologia que tanto anunciaram e com que ora nos deparamos não
é um belo mundo. Onde os estados ideológicos, isto é, socialistas, começaram a
ser desmontados, nada de superior surgiu. Na União Soviética, a longa Pax Comunista, primeiro implantada nas
quase cem nacionalidades da República e, depois de 1945, nos países do Leste
europeu, começo a ruir. E com o que nos deparamos?
Na
República do Azerbaijão, os aziris muçulmanos saíram à caça dos armênios
cristãos minoritários na região. Na Geórgia soviética, várias minorias estão
sendo ameaçadas de extermínio puro e simples. Na Romênia, a escassa população
de origem húngara foi quase linchada pelo simples desejo de poder voltar a
falar seu idioma. Na Bulgária, uma multidão ocupou as praças de Sofia para
protestar contra o desejo da minoria turca, que perfaz apenas 8% da população,
de batizar seus filhos com nomes otomanos. Na vizinha Iugoslávia, sérvios e
croatas levaram o país à guerra civil devido a suas antipatias históricas e que
apenas o prestígio do falecido marechal Tito mantinha conciliados. Se olharmos
para a África do Sul, o panorama não é diferente. Bastou o porrete do policial
branco começar a ser desativado para que zulus e xosas dessem início a
violentas chacinas que mesmo os abraços de Nelson Mandela e o chefe Butelezi[2]
estão longe de poder cauterizar.
O desaparecimento dos conflitos de ordem ideológica que,
queiramos ou não, eram intelectualmente e humanamente mais apaixonantes, deram
lugar ao medíocre entrechoque étnico, as matanças cretinas que levam a um
rebaixamento geral das lutas políticas. Que tratado posso eu escrever a favor
de um grupelho étnico qualquer, - “o que me interessam os hotentotes?” – já disse
Voltaire faz duzentos anos.
Mas prevê-se também um efeito devastador junto à nova
geração desideologizada deste final de século reduzida ao ideário yupe do sucesso financeiro e do consumo
fácil. Estamos cada vez bem mais longe daqueles tempos em parte considerável da
juventude estudantil ocidental resolveu eleger como modelo, segundo Lucio
Colletti[3],
“o deserdado, o marginalizado, o pobre”. Tempos em que os filhos da sociedade
afluente terminaram por exercer um saudável exercício de militância crítica às
instituições e costumes que então nos cercavam.
Será muito
duro para os jovens de hoje viver em sociedades que perderam qualquer interesse
no aperfeiçoamento altruísta do homem e cuja máxima preocupação é o pregão da
Bolsa de Valores. Estamos também aí ameaçados por uma regressão que nos
conduzirá a sermos colhidos pelo acaso, pela consulta às trajetórias de Netuno,
pelo comportamento de Plutão, pelos delírios dos comentas, pelo predomínio do
kardecismo, da cultura zen, pelas previsões de Nostradamus, pelos humores de
Xangô e pelo aumento desbragado da literatura zoroástrica.
Este vazio
existencial-ideológico termina sendo ocupado, cada vez mais, pelo entorpecimento das drogas e outros
derivativos afins, situação em que cada um procura, individualmente, a simulação
de uma pequena fuga de um cotidiano reduzido à mediocridade. Estará essa gente
que agora começa a enfrentar o fim do século condenada, como disse certa vez
Baudelaire aos da sua época, “à farsa, ao erro, ao pecado e à mesquinhez, tendo
que ocupar seus espíritos com os destroços das boas intenções do passado da
mesma forma que os mendigos se alimentam dos seus próprios piolhos”?
[1]
Sociólogo estadunidense (1919-2011), autor de várias obras entre as quais, “O
Fim da Ideologia’.
[2] Mangosuthu
Buthelezi é um político sul- africano, chefe tribal dos zulus e presidente do
partido político Inkatha Freedom Party, que ele formou em 1975.
[3]
Filósofo e político italiano (1924-2001).
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