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Havana |
O significado da indiferença
Jânio de Freitas
Folha de São Paulo, 18.12.2014
Os 53 anos do bloqueio americano a Cuba não foram ao regime
comunista cubano. Foram a milhões de crianças, e a milhões de mulheres, e a
milhões de homens , que compuseram na infância, na juventude, como adultos e
como velhos as sucessivas gerações submetidas a mais de maio século do flagelo
inútil de carências terríveis.
O regime sobreviveu muito bem, deu-se mesmo ao luxo de
derrotar todas as investidas, nas mais variadas formas, que a maior potência
bélica não cessou de lhe dirigir. As afirmações de que o regime mudou não são
inteligentes, são apenas vulgares. O que mudou foi o mundo, e o regime se
adaptou às circunstâncias, como sempre fizera, e por isso sobreviveu. Em nova
York, há 50 anos, ver negros entrando no
elevador com brancos era prova de estar na ONU.
Hoje a discriminação continua, porque o segregacionismo está na índole
do país, mas os brancos vão à Casa Branca (um nove sugestivo) para falr com um
negro.
E por que tantos anos de sofrimento imposto a um povo cujo
país nada poderia contra os Estados Unidos?
Os motivos do bloqueio e seus antecedentes perderam-se na
vaguidão "cultural" da atualidade. Mas não diferem dos outros que têm
movido os Estados Unidos mundo afora. Apoiadores da ditadura de Fulgêncio
Batista - simbolizável nos órgãos genitais mandados à noiva do estudante
oposicionista que os perdeu na tortura -, os Estados Unidos exigiam que a
revolução democrática de Fidel Castro preservasse os negócios de americanos no
seu quintal cubano: a maior concentração de cassinos os e bordéis do mundo, bebidas alcoólicas,
grandes plantações de cana com mão de obra semiescrava e exportações de açúcar.
Cuba era dividida entre negócios e grupos da máfia americana.
Os problemas começaram com o fechamento dos cassinos e
bordéis. Os chefes mafiosos haviam sido importantes para a eleição de Kennedy. A
escalada foi intensa: reação americana, avanços revolucionários com
nacionalizações e reforma agrária. Kennedy ordenou a invasão, derrotada pelos
cubanos, e o bloqueio total a Cuba. Fidel, em seu primeiro grande movimento de
manipulação das circunstâncias, compõe-se com a oferta de ajuda da União
Soviética, típica da Guerra Fria. Até então, e desde a luta contra Batista, o
grupo de Fidel e os comunistas mantinham hostilidade frontal. Também isso
mudaria, e mudaria tudo mais.
Dez anos depois da morte de Stálin, o Partido Comunista
Cubano conservava o stalinismo em sua forma mais ortodoxa. Integrado a um
governo que precisava apegar-se às relações com União Soviética, OCCC e suas
concepções tornaram-se a força predominante na caracterização do regime.
A crise da União Soviética desnorteou o regime cubano, e o
fim do comunismo soviético lançou-o em circunstâncias que enfraqueceram a
ortodoxia. No tempo das aberturas, o poder voltou ao reformismo, com uma
peculiaridade: passou de irmão a irmão, com o sisudo e inflexível Raul
retomando o Fidel extrovertido e aberto do princípio. E agora, o papa
Francisco, o segundo papa cristão em nosso tempo, com João 23.
A tão longa indiferença americana com o sofrimento de
milhões de vítimas do bloqueio não tem originalidade. É a mesma que, em certa
manhã de verão, lançou sobre os habitantes de Hiroshima uma tempestade de fogo
e gases que os carbonizou, quando o seu país já queria discutir os termos da
rendição. E, passadas pouco mais de 48 horas, a mesma indiferença jogou uma
segunda bomba atômica, sobre os habitantes de Nagasaki, incandescendo-os todos.
É a mesma indiferença que lançou sobre o pequeno Vietnã mais bombas com o fogo
pegajoso do napalm do que todas as suas bombas lançadas na Europa e na Ásia
durante a Segunda Guerra Mundial. É a mesma indiferença de um país, em palavras
recentes do seu presidente, que "esta em guerra permanente".
Indiferença pode ser sinônimo de perversão e perversidade.
Significado que, parece provável, os futuros historiadores vão preferir.